Marrom, Negão e Pintado mostraram os dentes logo que me aproximei. Não estavam sorrindo. Era braveza mesmo. Mais antiga da turma, Princesa estava dentro do carrinho e, para proteger seu dono e seus filhotes, olhou desconfiada. Honrando o nome, a Enjoada também fez cara feia. Logo, todos foram acalmados pelo morador de rua José de Paula Chagas. “Deixa disso, pessoal”, disse ele. Com uma obediência admirável, todos se sentaram.
Era 11h38 desse domingo quando eu – assim como muitas famílias de Bauru – seguia para almoçar. Na Nações Unidas, encontro José, 47 anos, com seu carrinho de recicláveis. Mas não um carrinho comum. O ursinho de pelúcia surrado, os potes de sorvete vazios e os pacotes de ração mostram que, na verdade, é a casa ambulante dos seus inseparáveis 11 cães: Marrom, Negão, Pintado, Princesa, Enjoada, Luluzinha, Dog, Cirilo, Nero, Seca, Zé (xará do dono, por sinal).
“Olá. Posso falar com o senhor?”, gritei, ainda de dentro do carro. “Opa. Claro”, disse José, com um sorriso castigado pelo tempo, porém, forrado de simpatia.
Não parei o carro por acaso. Já tinha ouvido falar de José. Nos últimos dias, após ser fotografado, ele se tornou “hit local” nas redes sociais.
Ao contrário dos cães que o protegem, o catador de recicláveis não ofereceu qualquer resistência para uns 40 minutos de bate-papo. Topou de cara contar um pouco da sua história e mostrar que não ter um lar não é determinante para não dar um lar a alguém. Ou, melhor, a 11 ‘alguéns’.
“Eu sempre gostei de cães. Fui vendo eles abandonados e recolhendo. E trato muito bem. Pode faltar coisa pra mim, mas pra eles não. Compro comida pra eles com o dinheiro que consigo catando recicláveis e também com a ajuda das pessoas. Eu já passei fome. Mas, eles nunca”, conta, orgulhoso.
Orgulho que aumenta quando José mostra as carteirinhas de vacinação de todos (todos mesmo) os seus cachorros. Ele também “ostenta” os remédios que compra para eles. Na ocasião, Marrom estava com as orelhas azuis por conta de um medicamento.
Nas ruas
José chegara a Bauru há três semanas. Ele veio da Capital com “tudo o que tem”: o carrinho e os 11 cães. “Eu parava em postos e alguns lugares para eles descansarem. ‘Judia’ muito vir de uma vez”.
A Capital foi o destino de José há mais de dez anos, após um divórcio um tanto quanto traumático no Paraná. Ele, que vivia em uma propriedade rural e foi tentar a sorte em São Paulo. Acabou, contudo, encontrando só as ruas.
“A gente se acostuma a viver assim”, resume, jurando não ter qualquer passagem criminal e nem envolvimento com drogas. “Esses dias, um policial me parou. Mas foi para tirar uma foto e mostrar os cachorros para a irmã dele”.
PERAMBULANDO: A vida nas ruas, entretanto, não é fácil, confessa José. Ele indica um ponto no qual havia acabado de passar a noite. “E o pior são os dias que chove. Mas daí eu pego esta lona e cubro o carrinho. Os onze se amontoam lá dentro e se protegem da chuva”.
Não é a primeira vez que José vem a Bauru. Negão foi presente dado a ele pelo dono de um restaurante da cidade. “Este aqui é bauruense. Tá voltando para casa, né?”, diz, afagando o cachorro que, antes arredio, mas, a esta altura, já lambia minha perna.
Na verdade, a mãe de José reside em Bauru. Como tantos e tantos casos semelhantes, a vida debaixo de um teto parece não contentar mais para quem acostumou a viver sob o céu aberto. “Passei a Páscoa lá. Mas não penso em morar com ela não”, conta o catador de recicláveis, que tem três filhos, inclusive, um também morando em Bauru.
Os planos do homem são modestos. Ficar alguns meses por aqui catando recicláveis e depois cair na estrada com os cãezinhos. Seus sonhos são mais amplos. “Queria uma casinha, mas na zona rural. Para que eu pudesse levar todos eles. Porque sem eles eu não vou. Quem sabe, um dia, eu tenho um sítio. Sei que é muito difícil, mas não custa sonhar, né?”.
SOLIDARIEDADE
Neste momento, a entrevista é interrompida. Um carro prata para. Uma mulher desce os vidros e dá a ele um lanche, refrigerante, dois cupcakes e R$ 5,00. Ela ainda insiste em trazer ração. Ele agradece com o mesmo sorriso de ponta a ponta que me recebeu. Antes de a motorista partir, elogia a atitude dele e diz que, se pudesse, pegava os onze cachorros para cuidar. “Mas eu não daria, não. Eles são minha família”.
Quando ela vai embora, José senta, pega o lanche e já chama a “família”. Já se passava do meio-dia de um domingo. “Não vai comer, seu José? Vai dar o lanche pros cachorros? E seu almoço?”, questiono. “Ah. Eu me viro com algo. Eles que não podem ficar sem comer, né? Ainda mais quando tem algo diferente”.
Despeço-me dele e dos onze cachorros. Vou embora para meu almoço. Levo comigo a história de José, o acolhimento por parte de quem parece não ter nada a oferecer, a simpatia e a atitude da mulher que parou para ajudá-lo de forma totalmente espontânea (“eu não gosto de pedir as coisas”, disse ele, pouco antes). Em um mundo muitas vezes cruel e inóspito, repito a frase de José quando ele falava do seu sítio imaginário: “Não custa sonhar, né?”.
Famoso na Internet
José de Paula e seus 11 cães ficaram famosos – pelo menos em Bauru e região - nos últimos dias nas redes sociais. Ao ver a “família”, a jornalista bauruense Tay Gonçalves resolveu fotografá-lo e postou nas redes sociais. Até a tarde dessa segunda-feira (13), a imagem já tinha mais de 7 mil compartilhamentos e cerca de 26 mil curtidas.
“Perguntei como fazia para alimentá-los, aí o sorriso chegou até a orelha, ‘muitas pessoas me ajudam, consigo sempre comida pra mim e pra eles’, disse o homem, que fez questão de abrir a sua pochete e mostrar que todos tinham carteira de vacinação. Ajudei com um dinheirinho e perguntei se poderia fotografá-lo, perguntou se estava bem e click... ganhei meu dia! Ainda existe gente boa nesse mundo!”, descreveu a jornalista.
A tristeza das perdas...
A “família” de José era ainda maior. Chegou a ter 16 cães. “Eu estava em São Paulo e uns rapazes me roubaram. Me empurraram e roubaram R$ 360,00. Ainda levaram alguns dos meus cachorrinhos”, conta. “Só não foi pior porque os cachorros avançaram neles e me protegeram. O Zé, coitado, tomou até uma madeirada na cabeça”.
Outro que ele se recorda com saudade é do Ursinho. Perto de Agudos, o cão foi atropelado. “Eu deixei um outro morador de rua cuidando deles rapidinho. Quando voltei, ele tinha deixado o Ursinho escapar. Você precisava ter conhecido aquele cachorro. Ia adorar ele”, conta, mostrando que ainda guarda a carteira de vacinação dele como lembrança.
E já teve quem tentou levar os cachorros, mas não conseguiu. “O Dog mesmo. Esses dias me ofereceram R$ 200,00 nele. De jeito nenhum que eu ia vender, né, Dog?”. De certa forma, o Dog parece reconhecer. No mesmo momento em que ouve seu nome, pula do carrinho e faz a maior festa para José.
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